domingo, 15 de agosto de 2010

HÚMUS / SORTE OU AZAR

Sorte ou Azar - foto Raquel Pelicano

O espetáculo “Sorte ou Azar, Levante a Mão Quem Quer Brincar”, 2010, deu-se a partir da adaptação de jogos-cena criados no processo do espetáculo Húmus 2006, apresentado na Bahia e fonte de estudo da tese de doutorado “Quando a dança é jogo e o intérprete é jogador: do corpo ao jogo do jogo à cena” 2009, UFBA de Márcia Duarte, também diretora de ambos os espetáculos. 


Húmus - foto Andrea Viana
Em Húmus a dramaturgia era baseada em jogos inspirados no mito do deus Dionísio, que propunham-se a representar simbolicamente desafios e provações que a entidade passou durante sua história. Os jogos-cena foram desenvolvidos pelos interpretes a partir de estímulos imagéticos e corporais específicos trazidos pela direção.

No processo criativo, os interpretes foram orientados a voltar seu imaginário para as idéias de ritual, jogo e festa. Desde a preparação corporal nos ensaios, eles eram estimulados a entrada no universo imaginário que compunha o espetáculo, executando diariamente, e de forma litúrgica uma espécie de ritual para a entrada naquele cosmos proposto.


Húmus - foto Andrea Viana

Assim, a condução da criação dava-se de forma que seus movimentos fossem munidos pela construção de um percurso imaginário. A construção desse percurso era individual, mas necessitava posteriormente de encontrar-se com os outros interpretes em busca de um imaginário coletivo para a execução e construção dos jogos em grupo. Essa dialética entre a criação de um mundo imaginário individual, e a manutenção do mesmo ao relacionar-se com o grupo, segundo os depoimentos presentes na tese da diretora, gerou dificuldades aos interpretes, principalmente por, em sua maioria, nunca antes terem sido estimulados a criar desta forma. Sobre esse processo Márcia comenta:

“Esse tornou-se o primeiro e grande desafio à capacidade imaginativa de cada um, apresentando dificuldades e obstáculos que nem sempre foram transpostos, satisfatoriamente, durante o percurso traçado do ritual ao jogo, para a construção de um imaginário coletivo.”(PINHO, Márcia Duarte, 2009, p.20)
Húmus - foto Andrea Viana
Os jogos deste espetáculo que foram transpostos para Sorte ou azar, levante a mão quem quer brincar são: “corda-cobra”, “caça e caçador”, “encoleirados”, “ascensão”, “fogo”, e “tempestade”. Com estes jogos manteve-se a inspiração matriz nas referencias de ritual, festa e jogo provindas do mesmo mito supracitado, bem como a macro estrutura dramatúrgica e alguns elementos de encenação e figurino.

Diferentemente do primeiro espetáculo, em “Sorte ou Azar” nem todos os interpretes jogavam todos os jogos. Desse modo, funções como a da personagem Destino, que em “Húmus” escolhia ao acaso os interpretes para cada o jogo, manteve-se na íntegra apenas em um momento do jogo, o “caça e caçador”.

Sorte ou Azar - foto Thiago Sabino
Isso ocorreu não só porque nem todos os intérpretes que compunham o novo elenco eram hábeis o suficiente a executar todos os jogos, ou mesmo pelo fato de que Márcia Lusalva e Pedro Martins, que se mantiveram em ambas as montagens, chegaram a um diferente estado de preparo e de assimilação do imaginário, mas sim devido à principal mudança estrutural que separa os espetáculos, que resume-se à relação da platéia com o espetáculo. No segundo espetáculo, a participação do espectador, antes restrita à apreciação visual, estendeu-se fisicamente até jogo-cena.

Sorte ou Azar - foto Raquel Pelicano
Esta possibilidade de interação denota o caráter inclusivo do jogo-cena, que pode acontecer, tanto em um profundo nível, imerso no imaginário da cena e munido por habilidades motoras, como no caso de alguns interpretes, ou em um estágio mais lúdico, de quem se desloca brevemente para aquela condição, o caso da platéia. Márcia em sua tese, a partir de ponderações dos interpretes de “Húmus” sobre o estado de entrada no jogo, compartilhada mais tarde com o público em “Sorte ou Azar”, comenta:

“Em suma, vimos que o jogo-cena pode acontecer plenamente no estágio em que o imaginário é compartilhado. (...) O jogo-cena pode suceder em um estágio intermediário em que predomine o envolvimento emocional aliado ao desempenho motor, suscitado pela própria condição de estar em jogo”

No momento da interação por mais que a platéia desloque-se para o papel de caça, ou caçador por exemplo, ela jamais entra completamente no cosmos fictício da cena. Nesse caso é configurada uma dualidade onde intérpretes e platéia compartilham do mesmo momento, porém em níveis de aprofundamento diferenciado. Para a platéia caracteriza-se essencialmente a parte lúdica, onde o fim é a própria experiência individual, já para os interpretes o objetivo de sua participação estende-se por compor um espetáculo, tendo como fim a apreciação do público.

Estas conclusões podem ser tiradas a partir das conceituações de jogo e jogo-cena exploradas na tese da diretora. Márcia cunhou o termo supracitado, agregando alguns conceitos do jogo lúdico cotidiano, explicitados em sua citação de Huizinga, reformulada por Caillois (1990, p.29-30). Para ambos, jogo é uma atividade considerada:

“1- livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre;

2- delimitada: circunscrita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e previamente estabelecidos;

3- incerta: já que o seu desenrolar não pode ser determinado nem o resultado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à iniciativa do jogador certa liberdade na necessidade de inventar;

4- improdutiva: porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos novos de espécie alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida;

5- regulamentada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e que instaura momentaneamente uma legislação nova, a única que conta;

6- fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade outra em relação à vida normal.”(PINHO, Márcia Duarte, 2009, p.13/14)

A base da dualidade comentada acima, pode ser encontrada na tese quando a autora discorre sobre a mudança conceitual que o jogo sofre ao virar jogo-cena. Segundo a Márcia isso ocorre pelo fato de a atividade perder a característica de ser improdutiva para os que a executam, existindo para compor um espetáculo. Abaixo, Márcia discorre a respeito:

“Nossa experiência de criação do jogo-cena está inserida no contexto de uma atividade artística de cunho profissional, tanto no que toca ao processo de pesquisa, quanto à realização das obras propriamente ditas. Isso implica comprometimento, obrigações e preocupações que envolvem, sobretudo, remuneração dos artistas envolvidos no projeto. Isso poderia ser considerado como um fator contraditório ou mesmo inválido em relação ao caráter livre e improdutivo do jogo, tendo em conta que, para essa análise, interessa a perspectiva de quem joga, e não a do espectador que observa o jogo, em nosso caso, o espetáculo.(...) Como afirmado anteriormente, ainda que os trabalhos tenham sido remunerados, devendo cumprir prazos e adequar-se ao palco italiano do TCA, isso não modificou a concepção dos jogos, interferindo exclusivamente na forma como foram levados à cena.” (PINHO, Márcia Duarte, 2009, p.22)

No que tange a preparação do interpretes para o espetáculo “Sorte ou Azar”, foi levada em conta a relação cena-jogo, jogo e platéia. Para que a discrepância de níveis acima comentada fosse diluída, os alunos da disciplina Expressão 4, da Universidade de Brasília ministrada pela diretora dos espetáculos, foram convidados para compor o elenco como brincantes, sendo esses responsáveis pela interação do público com o jogo-cena.


Sorte ou Azar - foto Raquel Pelicano
A partir de minhas experiências compondo o elenco como brincante, descrevo abaixo considerações sobre o processo criativo e apresentações do espetáculo, direcionadas a interação entre platéia, interpretes, jogo e jogo-cena.

Primeiramente os jogos foram apresentados para nós sem o acesso ao imaginário pertencente aos mesmos, para que desse contato pudesse surgir uma relação semelhante à que a platéia apresentaria. E nesse momento, os jogos serviam também como treinamento para os interpretes brincantes, que a partir dessa experiência, puderam deparar-se com alguns limites, que proporcionaram a decupagem desses jogos em níveis de dificuldade, que serviram mais tarde para conduzir a interação entre o público e os mesmos.

Usando como exemplo a cena-jogo da “corda cobra”, podemos perceber uma gradação de nível de imersão, e também das relações com elementos que proporcionaram um recorte sobre dialogo aqui estudado.


O momento inicial se dava apenas entre o elenco, que procurava apresentar os códigos associados as regras, como quando alguém era pego pela corda, o mesmo saía do jogo e era acusado pelos outros através da fala “PEGOU”. Havia também a execução de alguns elementos de movimento descobertos em ensaio, e também trazidos pela experiência do espetáculo Húmus. Esses elementos tratavam-se de algumas “jogadas ensaiadas”, e fórmulas nascidas da interação com o jogo, que se o acaso permitisse aconteceriam enriquecendo a cena, porém, não se tratava de uma coreografia, bem diferente disso, a execução acontecia fruto da interação do momento, sendo diferenciada a cada dia.


Sorte ou Azar - fotos Raquel Pelicano
A cena acima citada servia então como uma prévia, ou mesmo como uma demonstração das possibilidades de interação e de estabelecimento de uma relação tanto com a corda-cobra, quando com seus encantadores. Em relação á manutenção individual do percurso imaginário construído pelos interpretes e a interação com a platéia, pode-se traçar um paralelo com a fala de Márcia Lusalva retirada da tese de Márcia Duarte, sobre a interação entre próprios interpretes no processo de Húmus;

“Porque quando a gente se comunica com o outro, o seu imaginário é concreto, digamos, é real e físico. Você tá vivendo ele. E como o outro não enxerga aquilo tão concretamente como você, toda vez que você estabelece o diálogo, ele quebra a sua verdade. Entendeu? Não porque ele tá quebrando, porque ele quer, é porque ele não vê.(...) Eu tinha que ser concessiva e não podia estar tão profunda em mim.” (PINHO, Márcia Duarte, 2009, p.25)

Também para os interpretes jogadores chamados de brincantes, a imersão no jogo tinha de acontecer de forma concessiva, como Lusalva comenta acima, para que se permitisse a entrada do público no momento seguinte. Ou seja, deveria ir a um nível de profundidade que mantivesse a concentração no imaginário do jogo, porém que fosse flexível o bastante para se comunicar com a platéia sem perder a conexão com seu percurso interno, ou para que não ocorresse como dito no depoimento acima, a “quebra da verdade”.


Sorte ou Azar - fotos Raquel Pelicano



Para chegar a configuração final da cena, foram executados ensaios abertos, tornando possível exercitar a interação e a condução do publico no jogo, e também a manutenção supracitada. A partir desses ensaios, uma prática já adotada no espetáculo “Húmus”, pudemos verdadeiramente testar e criar formas de interagir com a platéia, para saber lidar tanto com a timidez, quanto com a intrepidez dos participantes,alem da própria concentração no imaginário do espetáculo. Sobre a utilização de ensaios abertos em relação a manutenção do imaginário no processo de Húmus Márcia comenta:

“(...) agreguei ao processo de Húmus a experiência de oferecer ensaios abertos ao público, o que contribuiu para romper com a relação de privacidade associada à liberação das fantasias criativas e ousadias experimentais dos intérpretes.”

Através das experiência das apresentações, posso concluir que, apesar da preparação física e imagética durante o período dos ensaios, o balanceamento do mergulho no cosmos da cena e a interação com o público só pode ser consolidada verdadeiramente durante a temporada, pois há de se levar em conta alguns fatores não antes experimentados, como a disposição espacial das arquibancadas e a quantidade de pessoas no teatro.

Por vezes poucas pessoas da platéia se dispunham ao jogo, e a chamada das mesmas, em diversos momentos necessitava de um contato a mais, nunca com insistência demasiada ou a um nível físico, e sempre respeitando a vontade do público. Esse dito contato exigia do brincante uma abordagem alicerçada pelo imaginário do espetáculo, que pudesse inspirar no público diversão e confiança, como uma chamada para entrar naquele mundo imaginário da cena. O encontro e o balanceamento da interação entre interpretes brincantes, o próprio elenco entre si, e público parece tratar-se de uma afinação interna em relação aos níveis de profundidade imaginária, que permita um contato dialético com o público que se encontra de fora do universo imaginário proposto.
Sorte ou Azar - foto Raquel Pelicano


Faixa da trilha sonora de Sorte ou Azar - Levante a Mão Quem Quer Brincar (2010), produzida por Quizzik e com sonoplastia de DJ Ricco


Quizzik - Losango by quizzik



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