segunda-feira, 16 de agosto de 2010

CONCEITO: JOGO

O Jogo: O lúdico, o sagrado e o poético.

Sorte ou Azar - foto Thiago Sabino


"Muitas podem ser as imagens que surgiram ao se pensar em jogo, ela podem ir desde jogos de azar, aposta e competições até as brincadeiras infantis de faz-de-conta. A idéia de jogo como uma atividade lúdica, que proporciona divertimento e bem estar é sem dúvida uma das mais presentes em nosso imaginário. “Existe, entretanto, um significado mais profundo e arcaico, que diz respeito à concepção de jogo como princípio lúdico inato aos seres vivos e que, no homem, pertence ao domínio do imaginário e encontra-se na raiz de toda a sua expressividade.” (PINHO, Márcia Duarte. 2009. p.1)

Pinho vai buscar essa concepção nos estudos desenvolvidos por Huizinga, que analisa o jogo e sua função social como um fenômeno cultural, através de um panorama histórico.
“Huizinga (1993, p. 3) observa que, em sua [do jogo] função vital e inata, nele existe algo que “transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação”. Devido à sua significação e valores expressivos, ultrapassa os limites da realidade física e implica na presença de um elemento não material em sua própria natureza, expresso pela tensão, pela alegria e pelo divertimento que suscita. Sua capacidade de fascinar, envolver e excitar constitui a característica primordial que explicita sua totalidade e nos coloca diante de uma categoria absolutamente primeva da vida, enraizada em camadas profundas da experiência humana.
(...) O autor (Huizinga) ainda acrescenta que reconhecer a natureza impalpável, irracional e imaginária do jogo é reconhecer, em sua essência, a manifestação do sagrado, é reconhecer o espírito. Em sua qualidade de atividade sagrada, ele agrega, propicia a comunhão e, mesmo quando se dá solitariamente, transporta o jogador a um estado da alma que o conecta com forças orgânicas vitais. Tudo ocorre em meio ao fascínio de sua ilusão: tempo real e imaginário e espaço fictício para fora do cotidiano, onde os sentidos escapam à função racional, liberando impulsos do inconsciente. Há envolvimento, imersão e deslocamento para outra dimensão do aqui e do agora, conservando seu encanto para além da duração de cada jogo” (PINHO, Márcia Duarte. 2009. p.2/3)
Sorte ou Azar - foto Eduardo Tavares

Quando se analisa as características fundamentais do jogo fica possível explicitar melhor essa relação com os ritos sagrados de cultura primitivas, através da presença de características em comum.

JOGO
“Entre esses aspectos fundamentais que definem o jogo, o autor (Huizinga) considera, primeiramente, a liberdade. O jogo é livre porque é voluntário: uma vez imposto, deixa de ser jogo. Em seguida, o autor observa que o jogo é desinteressado, não tem função de satisfação imediata de necessidades materiais, situando-se num plano superior aos processos biológicos de alimentação, reprodução e auto-preservação, respondendo à única finalidade de sua própria realização. É, também, circunscrito em limites temporais e espaciais, distinguindo-se da vida comum pela duração e espaço que ocupa. Joga-se até chegar a um fim e no interior de um campo determinado de forma material ou imaginária, deliberada ou espontânea. Finalmente, o jogo instaura uma ordem própria, específica e absoluta, definida por suas regras, e gera tensão pela incerteza e o acaso que lhe é implícito. Ademais, suscita relações grupais que ora se revestem de um caráter excepcional pelo mistério e pelo segredo que normalmente as envolve, ora acentuam sua diferença e estranheza em relação ao mundo habitual, pelo uso de disfarces e outros meios semelhantes à simulação ou representação de um “outro”, o que corresponde à mimeses ou imitação. O jogo implica, portanto, uma evasão da vida corrente para um espaço temporário de fantasia, de imaginação, conscientemente tomada como fictícia e exterior à vida habitual, capaz de absorver inteiramente o jogador.” (PINHO, Márcia Duarte.  2009. p.3)

RITO
“É executada no interior de um espaço circunscrito sob a forma de festa [celebração], isto é, dentro de um espírito de alegria e liberdade. Em sua intenção é delimitado um universo próprio de valor temporário [na medida em que transfere os participantes para um mundo diferente]. Mas seus efeitos não cessam depois de acabado o jogo; seu esplendor continua sendo projetado sobre o mundo de todos os dias, influência benéfica que garante segurança, ordem e prosperidade de todo o grupo até a próxima época dos rituais sagrados." (HUIZINGA. 1993. p.17)

Outra relação que pode ser estabelecida entre o ritual e o jogo e é a linha entre consciência e inconsciência, no jogo existe uma consciência, latente, de que o jogador está “apenas fazendo de conta” e Huizinga sustenta de que mesmo nos rituais primitivos não existe um estado total de ilusão. Essa percepção alterada da realidade pode ser comumente observada no jogo imitativo infantil, o “faz-de-conta” jogo imaginativo e imitativo espontâneo, onde a criança cria um mundo próprio organizando elementos de seu próprio mundo, esse mundo criado por ela vai ser totalmente levado a sério, porém a criança é capaz de distingui-lo perfeitamente da realidade.
Sorte ou Azar - foto Thiago Sabino

A característica mimética, a seriedade e a crença consciente presentes no jogo infantil, como mencionado acima, são características do jogo em geral e das praticas rituais ancestrais e estão presentes no que Pinho chama de jogo-cena, que é os princípios do jogo levados para a construção cênica em dança, que será explicado mais a frente.

“O que é extremamente relevante para a minha pesquisa é a compreensão da inerência do jogo à vida e à arte e como isso oferece bases para essa proposta de estudo. Vimos que o jogo manifesta-se desde os primórdios da atividade mental na existência humana como um mecanismo psíquico de investigação e experimentação, relacionando as fantasias inconscientes à realidade exterior. Constitui, assim, a base para toda a vida posterior e, na medida em que canaliza as energias instintuais para metas aceitáveis pela sociedade, é alicerce para a criação adaptativa do artista. Também o jogo manifesta-se na primitiva consciência da natureza, que se inicia com a percepção dos fenômenos e conduz à sua representação imaginária mimética e ritual. Por essa segunda via, Huizinga (1993) faz-nos compreender como as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza. Em suas palavras: “O que era jogo desprovido de expressão verbal adquire agora uma forma poética. Na forma e na função de jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e racionalidade, a consciência de que o homem tem de estar integrado a uma ordem cósmica encontra sua expressão primeira mais alta e mais sagrada.” (HUIZINGA, 1993, p. 21)

"O autor torna, assim, reconhecível o laço indissolúvel entre as formas de expressão poéticas e o jogo. Enfatiza o fato de situarem-se, igualmente, fora da sensatez da vida prática, nada tendo a ver com a necessidade ou a utilidade, com o dever ou com a verdade, e suas formas são determinadas por valores que transcendem idéias lógicas.” (PINHO, Márcia Duarte. 2009. p.11)

A partir desses princípios fundamentais de jogo e a maneira com que eles dialogam com a nossa cultura e com a nossa historia, Pinho cria o conceito de JOGO-CENA que vai aplicar na produção de espetáculos de dança.

“(...) o jogo-cena constitui-se como uma estrutura de composição regida por um conflito imaginário, situado em espaço e tempo próprios. Tal estrutura oferece aos jogadores liberdade para atuar sobre uma gama de possibilidades imprevisíveis de ação, delimitadas por regras e norteadas por uma progressão dramática que pode ou não suscitar a geração de diferentes desfechos, sem qualquer intuito de gerar vantagens materiais aos participantes, objetivando, exclusivamente, a produção de sentido e significados.” (PINHO, Márcia Duarte. 2009)

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